Transcrição dos artigos do Dr. João Reis Ribeiro sobre o livro "dias entreabertos", publicados no jornal O Setubalense , edições dos dias 2 e 16 de Novembro de 2022.
A perplexidade,
a angustia,
a incompreensão
pelo desconhecido
que nos amputa
tudo aquilo que
faz com que a vida mereça ser
vivida
Arlindo Mota
Diário dos dias da pandemia (1)
O estado de emergência, por
razões de saúde pública ligadas à pandemia, foi decretado em Portugal em 18 de
Março de 2020. Situação inusitada, abalou as formas de estar, de viver, de
partilhar. No dia seguinte, Arlindo Mota trocava mensagem com os frequentadores
da Universidade Sénior de Setúbal retransmitindo uma ideia de Maria Alice
Silva: “Estes dias, em que temos de reinventar ocupações, para encher as horas
que teimam em ficar presas no relógio do tempo, dão lugar a muita reflexão e
descoberta… Estes textos poderiam depois ser lidos e reflectidos nas aulas
futuras.”
O desafio foi aceite por duas
dezenas de voluntários e começaram os registos diarísticos de pequenos
acontecimentos, de quotidianos simples, de olhares através da janela, de
medição do mundo e da vida numa escala que era desconhecida. Dessa produção
nasceu o livro “Dias Entreabertos – Diário Breve dos Primeiros Meses da
Pandemia”, editado pela UNISETI (2022), reunindo 24 autores, incluindo a poeta
brasileira Vânia Lopez (que, do outro lado do Atlântico, quis colaborar no
projecto) e a cientista Maria de Sousa (1939-2020), imunologista ceifada pela
pandemia, de quem são transcritos três poemas, um deles escrito dez dias antes
de falecer.
O tempo de escrita decorre
entre 19 de Março e 27 de Julho (correspondendo ao tempo que faltava para
finalizar o ano lectivo da UNISETI), sendo o mês de Abril o mais frequentado,
com mais de quatro dezenas de participações.
Entrar por estes “dias
entreabertos” possibilita uma série de lembranças das pequenas descobertas e
aprendizagens, dos aspectos de um dia-a-dia a construir fora da normalidade,
que enternecem pelo que avivam relativamente àquele tempo. Um exemplo: o
açambarcamento de papel higiénico que sucedeu nos supermercados, tratado num
texto repleto de ironia por Arlindo Mota, mais parecendo estar-se numa
contemplação do fantástico.
Perante um viver fora do que
era a normalidade, os diaristas vão reconstruindo os seus universos e
partilhando essas novas combinações – Ana Maria B. entende, logo em 19 de
Março, que “estes tempos difíceis são de facto uma prova a todos nós”,
retirando uma conclusão: “Se não aproveitarmos isto para um ‘acordar’ e uma
mudança de mentalidade e paradigma, se não aprendermos a perceber o que é
realmente importante, então todo este esforço, sacrifício e vidas perdidas não
servirá para nada.” Entretanto, o ciclo da Natureza não se alterava e,
segmentada pela tristeza, Malice Silva dava, no dia seguinte, conta da chegada,
“enrolada na chuva, escondida numa máscara que lhe cobria o rosto”, da
Primavera. Com o afectar das relações de convivência diária graças ao
isolamento, os canais de comunicação alteram-se também e uma volta pelo parque,
bem cedinho, permite a Maria do Carmo Branco, num percurso quase solitário,
aproximar-se da casa de algumas amigas, “falando elas da janela e eu da rua”.
A invenção de formas
alternativas para as rotinas leva Malice Silva a duas descobertas repletas de
simplicidade: a primeira, os passeios na varanda – “na minha varanda da frente,
posso dar 40 passos, vinte em cada direcção, e outros tantos na varanda das
traseiras, o que, somado, dá 80 passos em cada ‘caminhada’. Não é mau!”; a
segunda, a atenção da vizinhança – “descobri, nas janelas dos prédios em redor,
vizinhos que nunca tinha visto.” Nestas rotinas, emerge também o tempo para os
pequenos prazeres, como sucede com José Manuel Fernandes, ao pensar sair para
um passeio no jardim e uma passagem pelo café para comer um pastel de nata: “De
repente, voltei à realidade: estamos em quarentena. Regressei a casa e
aproveitei para ler um livro. Agora tenho tempo de sobra para ler…”
Diário dos dias da pandemia
(2)
Ao longo dos textos de “Dias
Entreabertos – Diário Breve dos Primeiros Meses da Pandemia”, as recomendações
encontraram também espaço, haja em vista os apelos aos leitores para que “fiquem
em casa”, eco dos avisos vindos das estruturas da saúde pública e do medo
sentido no vazio das ruas. No entanto, as saídas estritamente necessárias (por exemplo, para ir passear os animais de
companhia) foram hipótese que logo serviu para alegrar os caninos, em passeatas
contínuas, como sucedeu com “Kiko”, o cão visto a ser passeado por uma senhora
e, passados vinte minutos, a ser acompanhado por um jovem, sequência que causou
estranheza a Maria do Carmo Branco: “O rapaz, a sorrir, explicou que, como só
havia um cão no prédio onde morava, todos os condóminos vinham passear o cão
com autorização da dona”. …história que merece nota irónica: “um negócio a
ponderar!”.
A imaginação tinha de
encontrar alternativas para este “desembrulhar dos dias” (João Santiago)
enquanto a televisão debitava o “boletim do dia da DGS” e a “evolução da curva”
para demonstrar a progressão pandémica, numa inversão informativa, como Fátima
Frazão Lopes enuncia em 28 de Março: ”Em
casa acordamos com o Coronavirus, tomamos as refeições com o Coronavirus, somos
bombardeados até à exaustão com as mortes provocadas pelo Coronavirus em
Portugal, na Europa e no resto do mundo. (…) O Coronavirus “infectou” as
televisões, as rádios, os jornais, as revistas e as conferências de imprensa”.
Desse mesmo dia é o registo de Fernanda Resende, marcada pelo retiro
obrigatório e pela busca de uma nova forma de relação com o mundo: “aqui estou
em prisão domiciliária, a cumprir a pena que me foi imposta “isolamento social”.
(…) Procuro reinventar o tempo em conversas com o meu interior.” E conclui:
Hoje não se vive, aprende-se a viver.”
Esta reinvenção passa por cenários
gizados por novas coordenadas: “a magia de um brinde com taças de champanhe
erguidas do outro lado da cidade”, sobre um aniversário celebrado à distância,
ou o reparar na roupa também “em quarentena de utilização” ou nos “sapatos que
esqueceram o jeito de andar” (Malice Silva); o cumprir tarefas desde há muito
adiadas, como “pensar, escrever, repousar com serenidade, meditar e conviver
com a comunidade de familiares” e “aceder à prática do maravilhoso culto da
imaginação”(João Santiago); a procura da proximidade para combater o frio do
afastamento através daquele “engenho tecnológico que o homem criou para
aproximar as pessoas”, permitindo o contacto com os familiares mais directos, sobretudo
“aqueles ramos maravilhosos que de nós partiram”, vencendo-se a irrealidade
daqueles dias (Sanchez Antunes, o mais assíduo frequentador desta antologia).
Alguns poemas perpassam também
por estes “Dias Entreabertos”, com destaque para aqueles que surgem em nome de
uma memória – Resendes Ventura (1936-2013)e Maria de Sousa (1939-2020),
trazidos por Fátima Ribeiro de Medeiros, o primeiro a propósito da energia da
palavra, partilhado no Dia Mundial da Língua Portuguesa (7 de Maio), a segunda
com um poema produzido quatro dias antes de saber que estava infectada pelo vírus
que a vitimaria passados dez dias (13 de Abril), testemunho forte de humanidade:
“Mas antes de morrer / Quero que saibam / O quanto gosto de vocês / O quanto me
preocupo convosco / O quanto recordo os momentos / partilhados e / queridos / (…)
/ Porque posso morrer e vós tereis de viver / Na vossa vida a esperança da
minha duração.”
A última intervenção é de
Arlindo Mota, em mensagem para Ana Bela Aleluia, uma quase justificação para este
conglomerado de textos, registando “a perplexidade, a angústia, a incompreensão
pelo desconhecido que nos amputa tudo aquilo que faz com que a vida mereça ser
vivida”. Momentos intensos de emotividade, surgidos na oportunidade de um
diário partilhado, conferindo à literatura o testemunho das dores dos tempos.
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